domingo, 26 de novembro de 2017

Consciência é Preta, Kalunga!

eu sou capoeira e isso muita gente já sabe (nem tanta gente assim), mas muita gente não sabe o que isso quer dizer, muita gente não sabe o que isso quis dizer nessa última semana. eu iniciei na capoeira aos 11 anos de idade, ainda na barra dos coqueiros, aquela ilhota em frente à aracajíves. parei por um tempo quando vim morar em feira (pq a capoeira aqui era foda, o pau comia, respeito passava longe, sobrava feitor, faltava malungo), e retornei já adulto, faz uns 8/9 anos, já!

eu achava que estava aprendendo capoeira, que aprendia capoeira, mas na real, eu só aprendia a me mexer, no máximo tocava uns pandeiros, berimbau, aprendia umas músicas, mas ainda estava muito longe de começar a aprender a capoeira, mas eu não sabia disso.

faz poucos anos, 3 ou 4, que comecei a aprender capoeira, e isso tem tudo a ver com essa semana, tem tudo a ver com o racismo. comecei a aprender o que a capoeira era e de onde ela vinha, por que ela tinha sido criada, por quem ela foi criada, pra que ela foi criada. fazer pirueta era pouco, queria ver mais profundo, capoeira é jogo de esconder, jogo de mandinga, eu queria saber o que estava escondido ali, ainda quero.

isso é muito bom porque me sinto um iniciante na capoeira, é o que sou, e o que espero ser pra sempre. entre outras coisas, entendi que na capoeira só pode haver iniciantes, aprendizes (embora a guerra esteja sendo travada por todos que ambicionam ser mestres), ela é feita de iniciantes, alguns com mais de 80 anos, repletos de sabedoria e marcados pela luta contra o racismo, todos aprendizes. a gente deveria se ver assim em relação às pautas raciais, se colocar como aprendiz, escutar, para de ser mestre, entendido, sabe-tudo, aprender.

a capoeira é preta. e cada vez tem menos pretos na capoeira. e cada vez se fala menos sobre os pretos na capoeira, sobre o racismo então: "nossa, melhor mudar de assunto, nada a ver isso aí, na capoeira somos todos iguais". capoeira foi e é a luta contra todo o sistema racista que se implantou na humanidade, e que ainda mata o povo no negro no brasil e em diversos outros cantos, racismo é foda. se vacilar, daqui a pouco capoeira se torna somente mais um espaço de opressão governada por brancos.

essa semana vivi entre esquivar dos imbecis falando pás de merda sobre o que desconhecem totalmente dos discursos anti-racistas no país, como a "não necessidade do dia da consciência negra, e sim o da consciência humana", (putaquepariu), e as possibilidades de acessar inúmeros textos, depoimentos, comentários, vídeos, documentários, feitos e compartilhados por quem se tornou sensível e decidiu mostrar outras visões sobre o assunto que nossa educação e formação racistas não nos permitiram enxergar.

e não tô falando do facebook, nesse momento reacionário que o brasil tem vivido, até evito ler as barbaridades que postam na rede, falo aqui de casa, das minhas relações, da hora do almoço, como somos racistas e não nos damos conta porque nunca precisamos lidar diretamente com isso, faltou tomar saculejo de pm e tapa na cara pelo visto, nosso conforto (nosso privilégio) nos emburrece incrivelmente. 

tem quem defenda que o racismo só deixará de existir quando a gente parar de falar nele (eu na adolescência devo ter pensado assim também), se isso fosse verdade, já teria acontecido, já que a gente evita a qualquer custo tocar no tema, a gente inventa qualquer coisa pra não tensionar a discussão nesse viés (mas a cota deveria ser social e não racial), a gente evita falar dele há mais de 500 anos e ele tá aí matando gente todo dia.

parece que agora vai, parece que agora vou começar a aprender capoeira, ouvindo de quem precisou dela pra sobreviver, se defender, se salvar, se enxergar, se perceber, se amar, se valorizar, se sentir forte, bonito. aprender dos pretos e pretas, dos seus donos. caminhando pra frente, olhando pra trás. Sankofa, volta do mundo, camará!

que a gente saiba perceber o nosso lugar com senso crítico aguçado, com honestidade, e tenha humildade e generosidade para perceber o lugar do outro, e ouvir o que o outro diz. 



"viva 20 de novembro, momento pra se lembrar... não vejo em 13 de maio nada pra comemorar..."

Quando você finalmente enxerga o racismo, você enxerga que ele está em tudo!



domingo, 19 de novembro de 2017

De peito aberto!

abrir o peito!



imagina que louco um sujeito com alma de poeta que foi obrigado pela família a cursar medicina e hoje se tornou um cirurgião? um cardiologista em crise profunda diante do seu paciente na mesa de cirurgia. ele precisa fazer com o outro, mais uma vez, o que nunca pode fazer consigo mesmo: abrir o peito.

abrir o peito dói e sempre dói, e há quem queira nos fazer tal cirurgia sem qualquer anestésico, quer que cheguemos diante deles e de seus orgulhos malditos e abramos a nossa carne, dizem que é nossa obrigação abrir o peito, revelar nosso interior. dizem de nós mas não fazem, tal como o médico que empunha friamente um bisturi e expõe as entranhas do outro mas cujo peito selado permanece.

abrir o peito dói e sempre dói demais. se dói em ti, dói no outro também! abrir o peito pode até matar, e mesmo que ocorra tudo bem, geralmente deixa uma cicatriz muito grande, que demora pra sarar, pra fechar de novo, e caminhar nesse mundo de peito aberto é arriscado pra caralho. 

abrir o peito dói e sempre dói pra caralho!



"por que você não sua quando toca? por que você não sua quando ama?"


quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Estômago!

foi preciso 30 anos.

nunca lidei bem com as coisas, com os problemas, com os amores, com os aborrecimentos, com gente escrota que oprime as outras, com gente desequilibrada que "ama" demais, nunca aceitei bem as coisas, nunca soube digerir.

desde muito novo, questionador, crítico, reclamão pra caralho, virginiano pra caralho (pra quem se importa com signos), toda vez que algo me parecia estúpido, insensato, arrogante, eu remoía por dias, semanas, pelo resto da vida, guardava tudo comigo. guardei tudo dentro de mim. não digeri, não defequei, e é claro que cedo ou tarde faltaria espaço.

parece que trago comigo ranços antepassados. coisas que meu corpo e minha mente não são capazes de expelir, de jogar fora, e ficam aqui enchendo o hd. 

foi preciso 30 anos pra que o corpo ligasse o alerta e pimba, tive uma crise de estômago filha da puta, me fodi, adoeci. os médicos disseram pra evitar uma lista de coisas que há tempos não consumia, refrigerante, café, comida gordurosa... nem lembro da última vez que bebi café ou refrigerante na minha vida, foda-se. até que alguém me questionou se não seria emocional. podia ser. só podia ser.

estou tentando algumas coisas, tratamentos naturais pra melhorar o funcionamento do corpo, mas foi no yoga que a lamparina acendeu: "às vezes dificuldades de digerir os alimentos estão relacionadas com as dificuldades que temos em digerir as questões da vida!". EITA!

tenho pensado sobre isso nas últimas semanas, de como durante toda a vida eu mastiguei pouco as coisas, daí engolia a seco, ou ficava remoendo, mas nunca cuspia fora. hoje aconteceu de novo e estou aqui tentando tirar a mente desse lugar, me afetar menos, digerir da melhor forma, ou cuspir, rejeitar os pensamentos.

30 anos pra entender que preciso mastigar. engolir se possível, cuspir fora se necessário, e seguir.



"se eu fosse um cara diferente, sabe lá como eu seria..."

lembrar que, se poderíamos estar num lugar diferente, sendo alguém diferente, então também podemos estar exatamente onde estamos agora, sendo exatamente quem somos agora!

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

O homem que não sonhava!

eu não sonho!

não estou falando que não tenho propósitos na vida, que não possuo grandes projetos e ambições, isso também não possuo, mas eu estou falando é sobre sonhar!

quem me conhece sabe que eu sofro pra dormir, não aprendi a dormir, falho nessa onda de dormir. e é foda porque dormir deveria ser das coisas mais fáceis do universo. caralho, é só ficar parado e pimba, mas eu não levo muito jeito. já escrevi sobre isso!

uma vez me levaram pra uma clínica, me encheram de cabo, ligaram umas câmeras e me deixaram lá pra dormir (eu me senti o wolverine naquela cena do adamantium...). porra, se eu não consigo dormir bem na minha caminha fofinha, quem achou que isso fosse acontecer numa maca de hospital com um monte de fio grudado em mim?

tenho lembrança de 2 ou 3 vezes em que deitei na cama e apagay, só acordei no outro dia, com aquela sensação rara de quem havia descansado, dormido profundamente. no normal eu fico revirando na cama com uma galáxia inteira girando na cabeça, e quando finalmente durmo, é por pouco tempo, acordo dezenas de vezes por noite, qualquer ruído me desperta, ruído algum também.

resultado dos exames: apneia, o que faz com eu pare de respirar enquanto durmo, e o cérebro faz com que eu acorde pra respirar, pra eu não morrer, imagino. segundo o médico eu não consigo atingir sono profundo, e segundo os médicos é necessário atingir sono profundo pra sonhar, então eu nunca sonho.

você nunca sonhou? eu lembro de dois sonhos até hoje, os dois foram ruins, é claro. sonhei que estava na guerra e me negava a atirar, que preferia morrer do que matar alguém. tomei um tiro, acordei molhado de suor, procurando o ferimento, em vão. no outro eu caía de uma ponte, dentro de um rio, acordei todo molhado, de mijo! (eu era criança sim.)

enfim, me peguei pensando isso nos últimos dias, que por dormir péssimo, sou um homem que não sonha, pelo menos, não enquanto dorme!



"me obrigue a morrer mas não me peça pra matar!"

eu voltei a ouvir engenheiros do hawaii, alguém me avisa que eu não tenho mais 16 anos!

domingo, 5 de novembro de 2017

45 minutos do segundo tempo!

sem abrir os olhos conseguiu alcançar o celular e desligar a porra do alarme. como poderia imaginar que havia chegado o dia de sua morte?

acordou puto! sempre acordava puto. segunda-feira. 15 pras 6:00. precisava correr. 

na sexta passada perdeu o ônibus e tudo foi pior que sempre, atrasou 15 minutos e o filho da puta do chefe o olhou como se ele fosse indigno de ganhar aquela bosta de salário. salário de merda, chefe filho da puta de merda!

se suspeitasse que aquele era seu último dia de vida jamais teria ido trabalhar. se ele soubesse... se a gente soubesse...

talvez até fosse trabalhar, mas teria comido algo antes de sair, foda-se o atraso. talvez comprasse uma arma e matasse todo mundo na firma. teria pensado isso se soubesse que estava prestes a não existir. com certeza riria com esse pensamento, sempre ria quando pensava em matar alguém.

lembrou que deveria ligar pra mãe. esqueceu. 

a porra do ônibus que não passa. (bom dia - bom dia. boa semana pra você - pra você também.) cadê a porra do ônibus que não chega? (bom dia - bom dia!).

o motorista acelerava rumo ao fim do expediente, acelerava pra caralho, 15 pras 7:00. Os corpos se chocavam, espremiam as almas que despertavam lentamente, algumas almas desciam arrastadas por corpos apressados. outras subiam, e se apertavam.

finalmente, sentou-se ao lado de uma velha. ela disse "bom dia", ele disse "bom dia".

tinha vivido 27 anos, o que pode parecer pouco para alguns, mas que pode parecer muito para outros. para ele não parecia nada, mas ele nem imaginava que iria morrer minutos depois, não teria porque pensar nisso. como seria se soubesse? como seria se soubéssemos?

o ônibus esvaziou. ele ouviu uma sirene. não se importou. o ônibus parou. que inferno! um barulho muito forte e o vidro partiu. sentiu dor. a última coisa que escutou foi o grito da velha: "meu deus!"






"a vida quando acaba cabe em qualquer lugar"